ANTIRRACISMO: REFLEXÕES SOBRE VIVÊNCIAS DE DISCRIMINAÇÃO NA ESCOLA MUNICIPAL PROFESSORA MARLENE ANDRADE

 


 

Janaína Sabina Cardoso, Escola Municipal Professora Marlene Andrade (Monte Santo/Ba) E-mail: janainacardosofasb@gmail.com.

Eduardo de Araujo Neto. Escola Municipal Professora Marlene Andrade (Monte Santo/Ba). E-mail: earne84@gmail.com.

 

Eu odeio a minha cor.

(Disse uma aluna da respectiva Escola)


Sabe-se que infelizmente falas e comportamentos racistas estão intrínsecos à nossa sociedade e por vezes são naturalizados como condutas aceitas ou brincadeiras sem maldade e infelizmente no ambiente escolar isso é ainda mais latente, tanto que a frase em epigrafe desse relato serviu como mola propulsora para que a celebração da Consciência Negra na Escola Marlene Andrade no ano de 2019 fosse feita de maneira mais crítica e incisiva em prol da luta antirracista.
Frisa-se que a Escola Municipal Marlene Andrade possui ensino fundamental (do sexto ao nono ano) e funciona nos turnos matutino e vespertino. Tendo alunos entre a faixa etária da pré-adolescência e adolescência. Diante de alguns relatos e situações de racismo presenciadas na unidade escolar, foi vislumbrado pelo corpo docente uma reflexão sobre o papel da escola no que diz respeito à desconstrução do racismo e ênfase na luta antirracista. Segundo a filósofa Djamila Ribeiro (2017) para fazer realmente uma luta antirracista é necessário entender o nosso lugar e duvidar do que parece “natural”. Trazendo essa análise para Monte Santo, é possível questionar por exemplo por que no Censo do IBGE consta somente três religiões, quais sejam, católica apostólica romana, evangélica e espírita quando os professores e alunos têm conhecimento de que há religiões de matriz africana no município e a intenção ao levar os grupos que fizeram apresentações voltadas para o Candomblé foi justamente apresentar a diversidade cultural do município, a qual tem sido ignorada até nos documentos oficiais.
Conforme dito alhures, a aquisição de atividades, projetos e ações que têm como objetivo conceber o preconceito racial enquanto um problema de exclusão precisa inserir, como bem defende Djamila Ribeiro, não ter medo das palavras “branco”; “negro”;“racismo”; “racista e dizer que determinada atitude foi racista é uma das formas de caracterizar e definir o racismo e todas as suas implicações. A filósofa defende pois, que não haja tabu em relação a essas palavras e sim o seu devido esclarecimento, e, assim, foi realizado na atividade aqui narrada que teve em seus slides, palestras, rodas de conversa e apresentações, o combate a opressão.
A necessidade de abarcar o tema também adveio das inúmeras vezes que os professores relataram situações discriminatórias e racistas em sala de aula e, assim, fez-se necessário aguçar a compreensão e o olhar antirracista. As brincadeiras que, quando passam a ser ofensivas, depreciativas e têm como foco a propagação de estigmas raciais que afetam a reputação social de todas as pessoas negras, como bem define Adilson Moreira em sua obra sobre Racismo Recreativo, precisam ser combatidas.
A ideia precípua foi trazer inúmeras formas da cultura afrodescendente para o ambiente escolar e, na mesma oportunidade, fomentar a importância do discurso antirracista, valorização da negritude e respeito às religiões de matriz africana. Nesse sentido, como bem salientou Angela Davis: “em uma sociedade racista, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista”. Sendo, pois, imprescindível a necessidade do exercício de reconhecimento dos privilégios, questionamento da realidade e, sobretudo, uma ressignificação no combate a todas as formas de racismo.
Nesse sentido, o porquê da criação dessa atividade/projeto foi na necessidade de perceber que há nesse povoado, bem como em todo o país, diversidade nas religiões, nas culturas, nos traços e desmistificar algumas ideias colocadas “estruturalmente” na mente das crianças e adolescentes, dentre elas “a não aceitação dos seus traços” ou ainda a ideia de um só tipo de beleza. Ao perceber que muitos alunos negros e negras demonstravam medo de se posicionar, de participar de eventos escolares a ideia era proporcionar um protagonismo, permitir que aquela criança que historicamente não foi “A rainha do milho ou a líder da torcida do time de futebol, pudesse mostrar sua beleza e personalidade, falar de si, escrever sobre seus objetivos.
É crucial relatar que mesmo com o advento da Lei 11.645/08, que torna obrigatório o ensino da História e das problemáticas propostas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Nem todas as Escolas atendem a esse diploma legal e na Escola Marlene Andrade essa disciplina não compõe a grade curricular. Ainda que muitos professores insiram a História da África em atividades esparsas com o objetivo de conscientizar os discentes sobre a luta antirracista.
Sobre os atores envolvidos a ideia foi convidar toda a comunidade escolar, principalmente os pais para que esses pudessem também refletir sobre a importância de combater o racismo, a intolerância religiosa e tantos outros absurdos. Como bem sinalizou Adilson Moreira (2019), piadas e brincadeiras racistas referendam construções culturais responsáveis pela afirmação da branquitude mo um referencial de superioridade moral. E nessa linha de raciocínio, essa atividade foi a construção simbólica da negritude como uma característica estética e moralmente inferior à branquitude, um dos elementos centrais do racismo recreativo.
Os valores que buscou-se construir com a atividade foi apresentar a toda comunidade escolar amostras da cultura afrodescendente, através de atividades em todas as disciplinas que foram produzidas ao longo da unidade, dentre elas:
Declamação do Poema Navio Negreiro nas disciplinas de Língua Portuguesa e Artes feita de maneira teatral. Sendo trabalhado a cada ensaio o movimento abolicionismo na luta contra a escravatura e o tráfico de escravos oriundos do pensamento Iluminista. Também aconteceram diversas coreografias de músicas atuais voltadas para a valorização da negritude, a exemplo de Iza, Projota e Karol com K, em que pese os professores tenham dado a temática e os alunos que sugeriram as músicas que foram dançadas na atividade.
Houve ainda a confecção de Turbantes, apresentações sobre culinária africana feita por uma nutricionista, grupos de capoeira, reisado e lundu que vieram de localidades próximas e ainda um Desfile para apresentar acessórios e vestimentas voltados para as africanidades.
Sobre os desafios enfrentados insta mencionar que ainda há certa resistência por parte de alguns atores da comunidade escolar no que diz respeito à religião de matriz africana, alguns mitos ainda rondam o respectivo povoado e isso causou estranheza para algumas pessoas. Todavia, a apresentação de lundu foi apreciada e respeitada por todos.
Ainda no que diz respeito às danças houve a apresentação de uma coreografia executada por um professor vestido de Orixá Iansã que é associada à Santa Bárbara no catolicismo, devido a influência da santa cristã sobre os raios, tempestades e trovões. Por tratar-se de um homem vestido de orixá também foi a oportunidade de trazer as discussões voltadas para a significação dos orixás e a correspondência dessas entidades com os santos da Igreja Católica.
As expectativas iniciais foram superadas, pois não contávamos com a participação de tantos pais e até pessoas da comunidade que se interessaram em participar das palestras, fizeram perguntas aos profissionais presentes e sobretudo assistiram atentamente às declamações, danças e apresentações dos alunos.
Os saberes compartilhados e construídos vieram das falas de todos que narraram situações de discriminação, desde a nutricionista negra que contou sobre situações de racismo vividas por ela durante a graduação e o policial que falou sobre a importância do Programa PROERD na luta contra o preconceito. Frisa-se que todos os professores também relataram situações e casos que se enquadravam na prática racista e sempre frisando a importância da prática antirracista mundialmente conhecida pelo discurso de Angela Davis (2016).
Djamila Ribeiro (2017) destaca em seu Pequeno Manual Antirracista, que quando criança foi ensinada que a população negra havia sido escrava e ponto, sem qualquer resistência. É notório que esse quadro ainda é real em inúmeras escolas e foi justamente para quebrar esse mito que o projeto ora narrado surgiu e pretende continuar trabalhando a história para além da versão dos vencedores, como bem destacou Walter Benjamin (2016).
A ideia é transcender a história oficial do Brasil indo além do mito da Democracia Racial, questionando o porquê que a aluna citada no início desse relato tem tanto ódio de sua própria cor. Quando isso foi ensinado a ela? Ou como disse Neusa Santos (1983) em sua obra “Tornar-se Negro” por que fomos definidos como raça inferior?
“Nós podemos ajudar a colocar na sociedade sujeitos que não sejam intolerantes, racistas lgbtfóbicos, machistas” como bem sinalizou Nilma Lino Gomes (2019) em entrevista ao site GZH Educação e trabalho. Destacando o papel da educação enquanto mola propulsora dessa transformação.
Por fim, é crucial destacar a importância da formação constante aos educadores, pois esses devem necessariamente trabalhar a desconstrução do racismo, preconceito e todas as formas de discriminação existentes. Eis aí um grande desafio, que perpassa pela aquisição de práticas pedagógicas que contemplem o autoconhecimento, fundamentações teóricas além das comuns e, sobretudo, capazes de compreender as raízes estruturais do preconceito racial.

             

Referências

 

BENJAMIN, Walter. “Teses sobre o conceito de historia” In: ____. Obras escolhidas, Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996. v.1. Magia e técnica, arte e política.

 

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo. Boitempo.2016.

 

MOREIRA, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo. Pólen, 2019. Coleção Feminismo Plurais.

 

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017.

 

SOUZA. Neuza Santos. Tornar-se negro ou as Vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro, Graal, 1983.

 

 

 

Comentários

  1. O relato traz muitas reflexões de enorme importância. O destaque da necessidade de ser antiracista, nesta sociedade altamente marcado pelas relações racializadas, é de enorme importância. A atividade realizada pela fala-confissão duma menina da escola, provocou um combate ao racismo desde a arte e a educação, mostrando-os como espaços privilegiados para duvidar daquelas situações, contextos e falas que parecem “naturais”, como a condição feia das pessoas negras. O racismo recreativo, expressado nas “piadas” sobre a negritude das pessoas, é um exemplo da enorme importância das/dos educadores ficarem atentos e realizar uma desconstrução constante do racismo em qualquer uma das suas expressões. Outro elemento central do relato é a participação dos pais nesses processos de repensar as relações e opressões raciais, combatendo assim a intolerância religiosa desde uma outra forma, como poderia ser a “brincadeira” que permitem apresentações teatrais, leitura de poemas, desfile do professor vestido como Orixá, entre outros exemplos. Finalmente, gostaria de tomar uma das reflexões finais, quando os comunicadores se perguntam, quando foi ensinado para essa menina a ter ódio da sua própria cor da pele para pensar?, para pensarmos juntes, como trabalhar na importância dos professores de ensino fundamental serem fortemente antiracistas para desconstruir as relações raciais? Na minha opinião, a partilha deste relato sobre o que suscitou a escuta da confissão dessa menina traz para gente um exemplo fantástico da importância e necessidade dos professores das escolas – públicas ou privadas – se posicionar de maneira firme - e, ao mesmo tempo, carinhosa – quando escutam esse tipo de expressões ou situações. Parabéns e obrigado a Janaína e Eduardo pelo relato compartilhado. Julio Itzayán Anaya López

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    1. Gratidão por esse olhar tão aguçado ao nosso relato! A frase dita aleatoriamente por uma aluna tinha tudo para passar despercebido em meio as correrias da vida docente. Ainda bem que nossa equipe não caiu no "racismo estrutural" ... utilizamos esse relato para nos reinventar, questionar e desmistificar essa inferiorização!

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    2. Concordo plenamente. Infelizmente, essa frase da aluna poderia ter passado direto pela naturalização do racismo estrutural e pela correria dos espaços acadêmicos. Ainda bem que isso não aconteceu e que vocês tiveram a atenção, foram provocades e sobre tudo reagiram a essa frase aleatória produzindo um evento lindo que compartilharam conosco neste relato. Continuemos nos reinventando, questionando e desmitificando o racismo estrutural. Obrigado por compartilhar essa linda experiência. Avante!

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    3. Vamos seguir com a nossa luta Antirracista! Esse ano o evento em si será na modalidade remota porque nossas aulas presenciais ainda estão suspensas, mas tenho certeza que nossa Equipe fará desse dia um dia de muita reflexão e aprendizagem! Gratidão por nos proporcionar isso!

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    4. Não tenho dúvida, o evento será lindo mesmo sendo de forma virtual. Longe de nos abalar pelo contexto, vamos encarar isso como um desafio para explorar outras ferramentas e possibilidades pedagógicas, como sei que vão fazer. Continuem(os)!

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  2. Parabéns, Janaína e Eduardo pelo profundo relato e pelo olhar atencioso para os (as)estudantes. É preciso que a escola rompa os muros e esteja integrada com o seu entorno. Para isso, torna-se urgente discutir questões como o racismo que estrutura esta sociedade e impede que o negro se veja como sujeito-cidadão, de modo a odiar os seus traços, como a projeção que a branquitude faz dele (a). O racismo é tão perverso que leva o negro(a) a não ter uma identidade forjada, a não ter consciência de si, como destacou Djamila. Diante disso, gostaria que abordasse um pouco mais sobre as ações antirracistas diárias adotadas na escola, visto que a discussão é ampliada quando do novembro negro. Existem estímulos por parte da equipe pedagógica para a inserção de literatura negra e/ou indígena? Como são abordadas as atitudes racistas na escola em destaque? Desejo força e resistência no processo de combate ao racismo. Eline Almeida Santos

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    1. Não temos coordenação dentro da Escola! Temos articuladores da Secretaria de Educação que por área e na medida do possível auxilia ações e atividades dessa natureza! Os estímulos para temática partiram da Equipe Docente e o apoio da Secretaria se Educação auxiliou no projeto! Sentimos falta da presença de um coordenação pedagógica na Escola!

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  3. Parabéns pela produção do texto, ele nos relata uma experiência exitosa de difusão de conhecimento na chave da educação para as relações étnicorraciais e por uma educação antirracista. O texto alinha três atitudes necessárias para uma educação antirracista: educar com raça, com beleza e graça. O texto nos relata algo muito pertinente para ser pensado, a disputa pelo imaginário. Mas para isso é imprescindível a fecundação de outras imaginações. E o relato potencializa uma imaginação antirracista. Acredito que além de termos a garantia das leis, como a lei 10.639/03 e 11.645/08, de estarmos assegurados no campo jurídico, temos que disputar o imaginário dos docentes e discentes. Ou seja, as formas culturais que potencializam outros sentidos no ser-com nas relações cotidianas da escola. Eu levanto essa questão para evidenciar não somente o conteúdo, mas as também formas. Parabéns pela atuação no chão da sala de aula. É no agir local e no pensar com o mundo que enfrentamos as violências cotidianas.

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    1. Acreditamos muito na construção de formações docentes que contemplem o imaginário dos nossos discentes!

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  4. Parabéns pela ação antirracista e pela reflexão crítica e seus desdobramentos. Seu trabalho destaca bem a importância de ações de desconstrução do racismo para a comunidade escolar e tão necessária na educação brasileira. A conquista das leis que incluem no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena já se fazem presentes, mas colocá-las em prática ainda é um grande desafio. Gostaria de saber se, após essa ação exitosa que foi relatada, a escola incluiu no planejamento pedagógico outras ações voltadas a essa temática? Embora o contexto pandêmico tenha exigido mudanças.

    Cleomar Felipe Cabral Job de Andrade.

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    1. Sim! A ideia para 2020 era focar mais nas discussões Antirracistas ao longo do ano letivo! Nesse momento, estamos debatendo como fazer algo com a mesma riqueza de maneira remota! Outro desafio!

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    2. Obrigada, Janaína.... sigamos nesses desafios!

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  5. Lindo relato de trabalho engajado e luta antirracista, parabéns aos professores idealizadores!!! Essa infelizmente é a realidade de muitos jovens negros e negras que ao longo do tempo foram ensinados a se odiarem e a odiarem seus iguais. Pensando justamente nisso gostaria que vocês relatassem um pouco mais sobre a recepção dos jovens da escola às atividades propostas. Houve engajamento total? Algum estudante se negou a participar? Houve algum tipo de desaprovação das atividades pelos jovens da escola?

    Raquel Viana dos Anjos

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  6. Parabenizo a escola e a todas e todos envolvidos na realização desse projeto. Atividades como essas são extremamente necessárias nas nossas escolas da educação básica. O quê aprendi sobre consciência racial e luta antirracista chegou a mim somente durante a graduação, começa esse debate desde cedo é mais que fundamental. E como vocês apontam no texto, temos a Lei 10.639 como suporte legal que precisa ser efetivada.
    Diante disso, gostaria de saber se após essa experiência, a escola pretende continuar com o projeto para além do novembro? Seria possível dialogar com secretaria municipal de educação para ampliação e continuação dos trabalhos com parceiras com outras escolas?

    Aila Cristina Costa de Jesus

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  7. Olá Janaina e Eduardo! Agradeço pela oportunidade de conhecer uma experiência que possibilita a construção de uma cultura antirracista em nossas escolas. Como mulher negra, reflito que no ambiente escolar parte de nossa personalidade se molda e nosso conceito de beleza (e não beleza) se cristalizam na construção do estereótipo da branca de cabelos lisos. Acredito que essa discussão não pode ficar escondida dentro do dia da Consciência Negra. Necessita alcançar nossos currículos e aulas cotidianamente, nos fazendo desconfiar do discurso hegemônico do negro escravo, bom para trabalho, da mulher parideira e esforçada. Iniciativas como a que relata aqui nos desafia a entender o que a população negra brasileira vive todos os dias. Muito grata!

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